Esta foi uma primeira semana (sim, 9 dias, mas as Grandes Voltas geralmente têm nos dias de descanso as divisórias mais importantes) relativamente aborrecida, há poucas grandes histórias para contar e quase todos os candidatos à geral mantêm as suas aspirações intactas. Esta é uma frase que poderia ser aplicada a 90% das provas de 3 semanas no 1º dia de descanso, mas neste Tour não poderia estar mais longe da verdade.



Quase todos os dias houve momentos memoráveis, este é um Tour que vai ficar para a história, e ainda só vamos na 9ª etapa. Foi uma semana que foi do 8 ao 80 muito depressa, do melhor ao pior num piscar de olhos, com o reforço de um ditado do ciclismo: não é o terreno que faz a corrida dura, mas sim os ciclistas.

Fazendo uma retrospectiva, infelizmente o primeiro acontecimento que ficou na retina foi a queda provocada pela senhora do cartaz “Opi-omi”, uma novela que durou muitos dias com possíveis queixas e fugas, entretanto esclarecidas. Haveria outra queda colectiva grave, antes de assistirmos a mais uma coroação de um dos heróis da casa após um grande trabalho da matilha. Alaphilippe ganhava com autoridade, num triunfo ofuscado pelos sonhos que as quedas destruíram.

No Mur de Bretagne foi rei e senhor Mathieu van der Poel, um dos aliens que incorpora este pelotão de luxo. Sempre com “Poupou” no pensamento, o holandês deu um show e ficou com a amarela, uma cor que lhe assenta muito bem. De amarelo, foi decisivo para o sucesso do seu colega Tim Merlier, numa chegada claramente demasiado perigosa para uma corrida desta dimensão. Mais meio pelotão ao chão, mais sonhos destruídos que se poderiam evitar com um traçado condigno.



Fougères viu o renascer completo do “Míssil da Ilha de Man”, o regresso às vitórias de Mark Cavendish. Quem dissesse que isto iria acontecer há 12 meses era apelidado de louco. As voltas que o ciclismo dá e as voltas que “a Matilha” proporciona. Ewan de fora e um silêncio ensurdecedor no carro da equipa, toda montada para ele. Cavendish de verde como nos bons velhos tempos e no dia seguinte teríamos o primeiro sinal do que aí viria, uma demonstração de autoridade e poder de Tadej Pogacar, um ciclista que nas Grandes Voltas é tão bom nas montanhas como no contra-relógio. O esloveno só não recuperou a amarela que já não vestia há quase 1 ano porque um especialista em ciclo-crosse que não treina na bicicleta de contra-relógio fez 5º com a roda traseira da Ineos e o capacete da Jumbo-Visma.

Na 3ª chance para os velocistas puros a Alpecin-Fenix não quis apostar em quem tinha ganho a primeira chegada e Philipsen fez 2º atrás do rejuvenescido Cavendish, nas nuvens e ainda mais verde. Uma longa e aborrecida maratona de transição para os Alpes tornou-se num dia épico, muito graças à irreverência dos “aliens” do ciclo-crosse. Armadilha montada por Wout van Aert e Mathieu van der Poel, que assim até garantiu que se mantinha de amarelo. Vitória para a Bahrain-Victorious, imparável desde Maio, festejou Matej Mohoric, que entrou para o restrito lote de corredores no activo com vitórias nas 3 Grandes Voltas, todos esses triunfos em etapas com mais de 200 kms. O Carlos Lopes esloveno. A UAE apanhou um susto valente e foi ajudada por tácticas no mínimo questionáveis, que uma certa equipa francesa iria pagar bem caro no dia seguinte.



Na entrada dos Alpes vimos um verdadeiro hino ao ciclismo, a Total Energies não conseguiu salvar as hipóteses de Latour (lembram-se do dia anterior e do desgaste acumulado?). Não contente com ter uma vantagem boa para os concorrentes mais directos, Pogacar foi avassalador. Carapaz arrependeu-se rapidamente da ousadia de o tentar seguir, arrancou a 30 kms da meta e em subida e meia “espetou” 3 minutos a toda a gente. Pelo meio deixou caras de espanto e de impotência perante tal potência, bateu o recorde do Col de Romme (mais rápido que Contador e os irmãos Schleck) e assinou uma das exibições mais impressionantes de sempre no Tour.

No último dia dos Alpes mais uma jornada épica, alavancada pelas péssimas condições meteorológicas. Formou-se a clássica “fuga bidone” com alguns nomes perigosos para a geral, os colombianos gelaram Ben O’Connor na descida, mas ficaram congelados quando o australiano passou por eles a voar em Tignes. O corredor da Ag2r chegou a vestir a amarela virtual, eventualmente retirada pela UAE, pela Ineos e por um Pogacar que mostrou novamente ser o mais forte dos favoritos. O’Connor cruzou a linha de meta com uma das maiores vantagens de que há memória no Tour, mais de 5 minutos e já estava bem quentinho quando chegaram aqueles que perderam lugar na geral para ele, todos menos Pogacar. Game over para Demare, Merlier ou Coquard, salvação para Cavendish, que festejou junto dos seus colegas na chegada.

Tentando deixar o melhor para o fim, o maior ponto negativo que há a apontar é a influência das quedas na competitividade da corrida, principalmente porque boa parte delas foi provocada por negligência de espectadores ou da organização. Todos gostaríamos de ver Lopez, Roglic, Thomas ou Haig na luta por um bom lugar no Tour, quantos mais melhor. Ao menos todas essas equipas têm alternativas ou formas de tentar salvar o Tour, já a Lotto-Soudal não aparenta ter grandes soluções depois de Ewan ter ido para casa com o braço ao peito.~



Felizmente, o que fica na retina é o coroar de Alaphilippe na 1ª etapa, o show de Mathieu van der Poel na Bretanha e o quanto ele lutou pela amarela, o rejuvenescimento de Cavendish, as histórias de superação, as exibições avassaladoras de Pogacar e o raid em Tignes de Ben O’Connor. Ficam os gestos de solidariedade e desportivismo de grandes campeões como Mathieu van der Poel no dia em que perdeu a amarela, de Primoz Roglic na jornada antes de abandonar. A emoção, a alegria e os sorrisos que deram e que nos deram.

E porque é que este Tour tem sido tão espectacular? Porque tem sido extremamente rápido, extremamente duro, quase demasiado bom para ser verdade, tem sido o Tour da diferença. Analisando os números, este é claramente o Tour com maior diferença entre 1º e 21º à 8ª etapa, ora vejamos:

2021 – 17:09

2020 – 3:09

2019 – 2:54

2018 – 1:34

2017 – 2:32

2016 – 3:16

2015 – 3:45

2014 – 6:12

2013 – 4:00

2012 – 4:46

Este fosso enorme pode ter várias explicações possíveis, e provavelmente até será uma conjugação de variáveis. Primeiro, tivemos imensas quedas colectivas fora dos 3 kms finais, para além dos corredores que abandonaram há aqueles que perderam tempo e optaram por perder ainda mais tempo. Obviamente nem sempre existe um contra-relógio individual de 27 kms, mas o que consideramos mais relevante é a velocidade das etapas conjugada com as condições meteorológicas, o que leva muitos ciclistas a simplesmente “partir o motor” e a perder muitos minutos. Para além disto, existe o nível estratosférico de Pogacar e a nova forma de correr trazida pelos “aliens” do ciclo-crosse, que transformam uma mera etapa de transição, numa oportunidade para o espectáculo.



E agora? Até parece mentira que ainda falta mais de metade da Volta a França pela frente. A armadura de Pogacar tem estado inquebrável, e a menos que haja alguma queda ou problema de saúde o Tour parece destinado ao esloveno tal a superioridade que tem demonstrado. Tem sido secundado por uma UAE forte e compacta, que soube corrigir os erros da maratona. Sempre atentos, têm estado em destaque Rui Costa, Majka, Formolo e McNulty. Ben O’Connor tem agora sérias possibilidades de terminar no pódio em Paris, tem 3 minutos sobre o 3º e na montanha está muito sólido. Vingegaard não é muito experiente, Uran não é muito de atacar, Carapaz tem disparado pólvora seca, se o australiano mantém este nível obtém o melhor resultado da carreira.

Na montanha perfilam-se 3 grandes candidatos em Quintana, Woods e Poels. Guillaume Martin luta agora por um bom lugar na geral e Higuita será necessário ao lado de Uran. Não é de descartar outros corredores entrarem na luta, Poels e Woods têm mostrado grandes fragilidades na montanha. Colectivamente a Bahrain lidera e tem tudo para continuar a liderar, nem parece o Tour com a Movistar no 9º lugar, é verdade. As fugas vão ser decisivas para estas 2 classificações, com tanta gente fora da luta pela geral e as diferenças tão extremadas o mais provável é as escapadas terem muito, muito sucesso.



A classificação por pontos ainda promete dar muito que falar. Cavendish será o melhor sprinter nas etapas planas, mas os seus inimigos são muitos, o britânico sobreviveu hoje, só que ainda falta muita dureza e tanto a Bike Exchange como a Bahrain sabem das suas fragilidades quando o terreno empina. A continuar a este nível na montanha Colbrelli arrisca-se a somar pontos em todas as etapas. Com Philipsen e Bouhanni à espreita, as jornadas 12 e 13 perfilam-se como decisivas para a atribuição desta prestigiada camisola.

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