507 dias. Foi este o tempo que demorou a União Ciclista Internacional a pronunciar-se definitivamente sobre o caso de André Cardoso. Neste período temporal o ciclista português esteve suspenso provisoriamente e agora que é conhecido a sua suspensão de 4 anos promete ir até às últimas consequências, mostrar que está inocente e limpar a sua imagem. É importante, portanto, situar as pessoas, rever os factos, e fazer uma cronologia do que aconteceu até agora.

Cronologia

18 de Junho de 2017 – André Cardoso vinha de um excelente 16º lugar no Criterium du Dauphine e estava a preparar o Tour, onde iria correr ao lado de Alberto Contador. Foi controlado nesse dia, num controlo fora de competição por elementos da “Cycling Anti-Doping Foundation”.




27 de Junho de 2017 – A União Ciclista Internacional (UCI) informa que André Cardoso teve uma análise anti-doping irregular, referente ao teste de dia 18 de Junho, e que a substância proibida detectada era Eritropoetina (EPO). O ciclista português foi notificado e requereu a análise da amostra B, como permitem as regras anti-doping da UCI. André Cardoso desmente o uso de qualquer substância dopante.

9 de Agosto de 2017 – A UCI informa o atleta que o resultado da amostra B é inconclusivo, e que mesmo assim vai pedir a suspensão, ao abrigo do código da Agência Mundial Anti-Dopagem. O código diz que os órgãos governamentais dos desportos (neste caso a UCI) podem ignorar os resultados de uma amostra B inconclusiva, referindo-se só aos resultados da amostra A. Segundo a UCI, os resultados diferentes deviam-se à degradação da EPO, que aconteceu no espaço de uns dias.




5 de Julho de 2018 – André Cardoso resolve finalmente quebrar o silêncio e dá uma entrevista à Velonews onde critica severamente a UCI. “Não penso que este caso ainda seja sobre doping, é sobre política. A UCI sabe que não sou uma estrela ou um milionário, talvez o laboratório tenha feito um erro porque é mais fácil simplesmente afastar-me do desporto. Se tivesse tomado algo assim alguma vez teria aberto a porta para ser testado? Abri a porta porque, se sou honesto, não quero saber do teste.

15 de Novembro de 2018 – A UCI anuncia que o Tribunal Anti-Doping da UCI decidiu impor uma suspensão de 4 anos a André Cardoso, por alegado uso de EPO.

16 de Novembro de 2018 – André Cardoso reage e emite um comunicado de imprensa, onde diz que quer provar a sua inocência e limpar o seu nome. Diz que a UCI contratou todos os médicos especialistas que o poderiam ajudar e que pretende angariar fundos para uma batalha legal.

Sendo assim, é provável que André Cardoso tente o recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto, caso tenha recursos para tal.

Casos (in)comparáveis

Mal se conheceu a deliberação do Tribunal Anti-Doping da UCI começaram as comparações aos casos mais recentes e badalados. Podemos então comparar os casos de Chris Froome e de André Cardoso? De maneira alguma, não têm praticamente nada em comum. Chris Froome teve um teste anómalo, a uma substância que é permitida em certas doses, e esse teste leva a procedimentos distintos e a possíveis suspensões completamente diferentes. Ao efectuar-se essa comparação apenas se desvirtua a realidade e se retira factos do contexto.




Haverá então, numa história recente, algum caso semelhante ao de André Cardoso? A resposta é sim. Após pesquisa, encontrou-se um caso com vários aspectos em comum. Um ciclista cuja amostra A, num controlo Anti-doping, acusou Eritropietina (EPO) e uma amostra B inconclusiva num ciclista que corria no World Tour.

Iban Mayo terminou em 16º na Volta a França em 2007, ao serviço da Saunier Duval. No entanto, o teste anti-doping realizado no 2º dia de descanso do Tour acusou positivo a EPO. Como é habitual, o ciclista pediu a amostra B, que segundo a UCI, foi inconclusiva numa primeira fase. O laboratório anti-doping de Paris estava fechado para férias em Agosto, a amostra B foi para a Bélgica, o resultado foi inconclusivo. A amostra B depois viajou meio Mundo para a Austrália, onde o resultado foi de novo inconclusivo. Só mesmo num 3º teste, no laboratório de Lausanne, a amostra B teve o mesmo resultado da amostra A.




Na altura, o porta voz da UCI para assuntos relacionados com anti-doping nunca falou em resultados negativo, referiu sempre a palavra inconclusivo, tal como no caso de André Cardoso. Ainda relativamente ao caso de Iban Mayo, a Federação Espanhola de Ciclismo decidiu encerrar o processo, com receio que a acusação fosse débil e redundasse numa indemnização ao ciclista em causa. A UCI não desistiu e recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto, pedindo 4 anos de suspensão para Iban Mayo. O Tribunal Arbitral do Desporto deliberou uma suspensão, com efeito retractivo para Iban Mayo, com a duração de 2 anos.

Recuemos agora para 2003. O fundista (atletismo) queniano Bernard Lagat acusou Eritropoetina, a mesma substância que André Cardoso acusou, a 8 de Agosto, e foi por isso provisoriamente suspenso. O atleta requereu a amostra B, que foi analisada a 29 de Setembro, cujo resultado não correspondeu à amostra B, ou seja, deu negativo (ou como a UCI diz, inconclusivo). O caso ficou por aí, a Federação Internacional de Atletismo fechou o processo, retirou a suspensão provisória a Bernard Lagat e o caso nem sequer foi para o Tribunal Arbitral do Desporto.

Uma visão crítica

Posto isto, não pretendo fazer juízos de valor, nem dizer taxativamente que o André Cardoso é inocente ou culpado. Também não estou a fazer uma acérrima defesa do André, apenas estou a analisar os factos.




O que sei é que um organismo máximo de um desporto não deve, de maneira alguma, colocar na “prateleira” e impedir um ciclista de desempenhar a sua profissão provisoriamente durante quase 1 ano e meio. Ainda para mais quando os ciclistas profissionais têm uma carreira tão curta (em média rondara os 10 anos). Mesmo que a decisão final do Tribunal Anti-Doping da UCI não fosse a suspensão de 4 anos, graças a estes 17 meses suspenso provisoriamente, a carreira de André Cardoso estaria praticamente terminada.

E este não é um caso único, como já foi aqui comprovado, entre o presumível teste anti-doping positivo de Iban Mayo em 2007 e a deliberação do Tribunal Arbitral do Desporto também houve bem mais de 1 ano. Tem de haver mais celeridade nestes casos, e a Associação de Ciclistas Profissionais deve tomar uma posição e pressionar a UCI para que isto não se volte a repetir, para bem dos seus associados. E mesmo a Federação Portuguesa de Ciclismo deveria tomar uma posição quanto a estes factos.




Também não compreendo a decisão final do Tribunal Anti-Doping da UCI. É verdade que geralmente os casos de EPO são punidos com 4 anos de suspensão, mas este não é um caso normal, longe disso. Não vejo qualquer razão para a suspensão de André Cardoso ser de 4 anos, e a de Iban Mayo ter sido de 2 anos. Lloyd Mondory, por exemplo, foi suspenso por 4 anos, os mesmos de André Cardoso, e também acusou EPO. Só que o francês viu as amostras A e B terem o mesmo resultado. É demasiado penalizador para alguém cuja amostra B foi inconclusiva receber a suspensão máxima prevista nestes casos. Significa que para o caso só foi tomada em consideração a amostra A, o que é abrir um precedente muito perigoso e quase considerar que os erros laboratoriais não acontecem e que os testes são infalíveis.

É evidente que a existência ou escassez de recursos financeiros tem impacto na justiça desportiva. Não na qualidade ou celeridade da justiça, mas na quantidade/qualidade de meios que se tem ao dispor. Só para pedir acesso completo à amostra B são quase 4 000 euros e os custos processuais são demasiado dispendiosos para o comum mortal, como André Cardoso, o que provoca uma desigualdade entre os mais e menos poderosos que não é desejável. É triste que para levar o caso ao Tribunal Arbitral do Desporto, André Cardoso tenha de “contar tostões” e angariar fundos, enquanto quem tem mais recursos nem pense 2 vezes e quase que nem se tenha de preocupar com isso. E isto não pode, nem deve acontecer.




Com isto não estou a dizer que André Cardoso deve ou não ser suspenso de todo, até porque não temos acesso a todos os documentos do processo. O que estou a dizer é que, à luz de casos anteriores, e tendo em conta a complexidade e os factos conhecidos do processo, uma sanção de 4 anos me parece manifestamente desproporcional e demasiado pesada para o ciclista português.

Escrito por João Crespo.

 

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